Nos últimos anos o direito humano à água surgiu como um tema relevante nos debates sobre os direitos fundamentais e recebeu ainda mais importância nos contextos onde a água é escassa e, às vezes, tornando-se motivo de disputas. Isso acontece em diversas regiões do mundo e no Semiárido brasileiro.
Somente em 2010 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de sua Resolução n° 64/292, reconheceu o direito à água potável e limpa e o direito ao saneamento como essenciais para a vida.
No Brasil, atualmente a maior parte dos municípios tem o Estado como responsável por cuidar da água e do esgoto, mesmo assim, o acesso a esses serviços ainda é limitado e o nível de investimentos no setor é bem baixo. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), dados retirados em 2018, quase metade da população (mais de 100 milhões de pessoas) ainda não possuem acesso a um sistema de esgoto e cerca de 16% (quase 35 milhões) não têm acesso a água tratada.
Entre os municípios analisados para retirada dos dados sobre o esgoto sanitário no país (cerca de 72,27% do total de municípios), 3,91% já possuem a iniciativa privada como prestadores de serviços, além disso, as regiões norte e nordeste estão classificadas com os piores índices de atendimento total de esgoto, atingindo apenas 10,5% e 28%, respectivamente, da população total da região.
Enquanto para o abastecimento de água foram retirados os dados de 92,4% dos municípios, onde 8,6% dos prestadores de serviços são empresas privadas, e entre as regiões com o menor índice de abastecimento de água estão o norte e nordeste, com 57,1% e 74,2% respectivamente.
No dia 24 de junho o Senado aprovou um novo marco legal para o saneamento básico no país, porém ainda depende da sanção do presidente da república para poder virar lei, mas esse tema já virou polêmica e divide opiniões sobre as consequências que podem acontecer caso seja aprovada. O autor do projeto é o Tasso Jereissati (PSDB-CE), que além de senador é empresário e faz parte do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar, uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo.
Entre as propostas presentes no Projeto de Lei n° 3.261/2019 (publicado nas páginas 513 até 533 do Diário do Senado Federal n°83 de 2019) podemos citar:
Mudança em contratos
Atualmente as cidades firmam acordos direto com empresas estaduais de água e esgoto pelo chamado contrato de programa, que contém regras de prestação e tarifação, mas permitem que as estatais assumam os serviços sem concorrência.
O novo marco extingue esse modelo, transformando-o em contratos de concessão com a empresa privada que vier a assumir a estatal, e torna obrigatória a abertura de licitação, envolvendo empresas públicas e privadas.
Os atuais contratos de municípios com estatais de saneamento, geralmente estaduais, serão mantidos até o fim do prazo pactuado.
Também poderão ser renovados pelas partes, por mais 30 anos, até 30 de março de 2022.
A mesma possibilidade se aplica às situações precárias, nas quais os contratos terminaram, mas o serviço continuou a ser prestado para não prejudicar a população até uma solução definitiva.
Os novos contratos deverão conter a comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, com recursos próprios ou por contratação de dívida.
Essa capacidade será exigida para viabilizar a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033.
Blocos de municípios
Outra mudança se dará no atendimento aos pequenos municípios do interior, com poucos recursos e sem cobertura de saneamento.
Pelo marco, terão de ser constituídos grupos ou blocos de municípios, que contratarão os serviços de forma coletiva. Municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos.
O bloco, uma autarquia intermunicipal, não poderá fazer contrato de programa com estatais nem subdelegar o serviço sem licitação. A adesão é voluntária: uma cidade pode optar por não ingressar no bloco estabelecido e licitar sozinha.
O modelo funciona hoje por meio de subsídio cruzado: as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa ajudam a financiar a expansão do serviço nos municípios menores e mais afastados e nas periferias.
Subsídios
Famílias de baixa renda poderão receber auxílios, como descontos na tarifa, para cobrir os custos do fornecimento dos serviços, e também gratuidade na conexão à rede de esgoto.
Lixões
O projeto estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010) para que as cidades encerrem os lixões a céu aberto.
O prazo agora vai do ano de 2021 (era até 2018), para capitais e suas regiões metropolitanas, até o ano de 2024 (era até 2021), para municípios com menos de 50 mil habitantes.
Nova tarifa
Os municípios e o Distrito Federal deverão passar a cobrar tarifas sobre outros serviços de asseio urbano, como poda de árvores, varrição de ruas e limpeza de estruturas de drenagem de água da chuva.
Se não houver essa cobrança depois de um ano da aprovação da lei, isso será considerado renúncia de receita e o impacto orçamentário deverá ser demonstrado. Esses serviços também poderão integrar as concessões.
Regulação
A regulação do saneamento básico será de responsabilidade da Agência Nacional de Água (ANA). Agências reguladoras de água locais serão mantidas.
Plano de saneamento
O projeto exige que os municípios e os blocos de municípios implementem planos de saneamento básico.
A União poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira para a tarefa. O apoio, no entanto, estará condicionado a uma série de regras, entre as quais, a adesão ao sistema de prestação regionalizada e à concessão ou licitação da prestação dos serviços, com a substituição dos contratos vigentes.
Os apoiadores do projeto defendem que com a iniciativa privada a qualidade dos serviços irão melhorar, visto que os investimentos serão maiores do que o governo pode fazer atualmente, e assim o saneamento chegará a locais que hoje são precários, além disso o governo estima que cerca de 700 mil empregos serão gerados, ajudando na retomada da economia após a pandemia do Covid-19.
Por outro lado, os críticos da proposta dizem que a privatização vai encarecer a conta para os consumidores e as regiões periféricas continuarão desassistidas, pois oferecem pouco lucro para as empresas. Além de que, colocar a água como uma mercadoria fará dela um bem que pode ser negociado pelo seu potencial de lucro e não por sua função social.
A alteração da função social da água explica o motivo pelo qual a privatização das empresas de água constituem um dos fracassos previsíveis do neoliberalismo e tem sido revertida nos países onde a população tem força política. Em duas décadas já foram registrados 267 casos de reestatização, entre esses casos encontram-se as cidades de Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz, que privatizaram esse setor a algumas décadas mas decidiram voltar atrás alegando que as tarifas estavam muito altas e as empresas não cumpriram as promessas feitas inicialmente, além de operarem com falta de transparência. Estes números mostram o fracasso social da iniciativa.
No Estados Unidos onde a população possui uma renda per capta sete vezes superior a dos brasileiros, e possui a maioria dos serviços públicos privatizados, contam com 1,7 milhão de norte-americanos sem água encanada nem chuveiro em casa, 200 mil que moram em residências sem esgoto e 14 milhões não conseguem pagar a conta, que subiu 40% apenas na última década.
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